"Entre Nós" | O mal de morrer - Viviane Ennes
Tirei os sapatos com as pontas
dos pés, a gravata me apertava, me sufocava, me impedia de respirar. Acendi um
cigarro antes mesmo da luz e o vi brilhar em fogo quente, vermelho e cheio de
fel. Resolvi abrir um pouco as cortinas, luz ainda apagada, mas não muito pra
não ser visto pelos vizinhos de andar. As meias aqueciam meus pés, um calor
muito grande, coração acelerado em pulso apertado. Não sabia mais como
descansar, não sabia mais amar, nem alinhar a vida com o que nela há. Tirei
todos os espelhos e vidros que pudessem refletir a imagem de mim que eu já não
conhecia mais, imagem de pai. Eu não via em mim nada de bom, nada de limpo, nada
que me despertasse cuidado. Não entendia como ainda podia viver dentro de mim e
conviver comigo. Apatia.
Em silêncio, fui na direção do
quarto, chamei pelo nome. Falei um pouco mais alto, mas ninguém me ouviu. O que
pude perceber foi um barulho no banheiro, um barulho rasteiro de água parecendo
escorrer. Bati na porta pensando em quem estaria ali do outro lado, usando da
privacidade do banheiro pra se esconder. Toquei na porta devagar, a porta que
eu já conhecia há tempos. Desgastada, amarelada de tanto pegar. Minha camisa,
agora com os botões semiabertos, tremia com as passadas do meu coração. Senti
um medo repentino, um desespero que me impulsionava a correr, sumir dali. Uma
solidão crescente e a certeza de que ali atrás daquela porta estaria o motivo
do meu sofrer. A angústia de ouvir aquela água sem fim, movimentando-se devagar
e continuamente, me forçou a hesitar e a repensar quem poderia estar ali daquele
lado. Chamei de novo pelo nome que era a única possibilidade de companhia que
eu tinha e ele não me respondeu.
Empurrei aquele portal já com as
mãos suadas, a camisa molhada e as meias escorregando no chão. Aquela água
escorria por mim na medida em que a luz do banheiro invadia meu corpo. Aquele
barulho de água em meus ouvidos se tornou profundo e submerso, aquele molhar
agora pingava minhas calças e o peso da umidade me fez escorregar e empurrar
aquilo que me distanciava de mim. Pouco antes de cair, vi o reflexo do rosto
que eu não via há meses. Desde o dia em que tirei todos os espelhos e vidros
que pudessem refletir a imagem de mim que eu já não conhecia mais.
Pálpebras já roxas, água não mais
transparente, mas vermelha como a ponta do cigarro que ainda queimava na borda
do bidê. Os ladrilhos do chão, antes azuis e tons de creme, agora eram de um
rubro que ofuscou meus olhos até que se fechassem de vez. O barulho da água,
que já me ensurdecia, me fez perceber porque não pude responder quando chamei
meu nome e então vi que o que faltou foi vontade de viver.
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