"Entre Nós" | O mal de morrer - Viviane Ennes


Cheguei em casa, coloquei a chave na abertura, empurrei a porta e o que vi foi o que vejo todos os dias, nada muda. A sala estável, o chão marrom de madeira pisada e gasta, um sofá de cor verde musgo já meio esgarçado, meio embaçado pelo tempo não pelo uso. Quase ninguém senta nesse sofá, minha última visita foi de uma irmã. Disse-me que eu havia mudado, me afastado. Veio cuspir em mim suas angústias e seus medos por estar sozinha, sem mim, sem ninguém. Depois da perda de meus pais, nos afastamos, nos deixamos de lado como que pra sobreviver em meio ao que a morte já havia tirado de nós. O que eu podia dizer se nem eu sabia mais o que era ter minha presença? Como ser alguém pra ela se nem pra mim eu era mais capaz de ser alguém?

Tirei os sapatos com as pontas dos pés, a gravata me apertava, me sufocava, me impedia de respirar. Acendi um cigarro antes mesmo da luz e o vi brilhar em fogo quente, vermelho e cheio de fel. Resolvi abrir um pouco as cortinas, luz ainda apagada, mas não muito pra não ser visto pelos vizinhos de andar. As meias aqueciam meus pés, um calor muito grande, coração acelerado em pulso apertado. Não sabia mais como descansar, não sabia mais amar, nem alinhar a vida com o que nela há. Tirei todos os espelhos e vidros que pudessem refletir a imagem de mim que eu já não conhecia mais, imagem de pai. Eu não via em mim nada de bom, nada de limpo, nada que me despertasse cuidado. Não entendia como ainda podia viver dentro de mim e conviver comigo. Apatia.

Em silêncio, fui na direção do quarto, chamei pelo nome. Falei um pouco mais alto, mas ninguém me ouviu. O que pude perceber foi um barulho no banheiro, um barulho rasteiro de água parecendo escorrer. Bati na porta pensando em quem estaria ali do outro lado, usando da privacidade do banheiro pra se esconder. Toquei na porta devagar, a porta que eu já conhecia há tempos. Desgastada, amarelada de tanto pegar. Minha camisa, agora com os botões semiabertos, tremia com as passadas do meu coração. Senti um medo repentino, um desespero que me impulsionava a correr, sumir dali. Uma solidão crescente e a certeza de que ali atrás daquela porta estaria o motivo do meu sofrer. A angústia de ouvir aquela água sem fim, movimentando-se devagar e continuamente, me forçou a hesitar e a repensar quem poderia estar ali daquele lado. Chamei de novo pelo nome que era a única possibilidade de companhia que eu tinha e ele não me respondeu.

Empurrei aquele portal já com as mãos suadas, a camisa molhada e as meias escorregando no chão. Aquela água escorria por mim na medida em que a luz do banheiro invadia meu corpo. Aquele barulho de água em meus ouvidos se tornou profundo e submerso, aquele molhar agora pingava minhas calças e o peso da umidade me fez escorregar e empurrar aquilo que me distanciava de mim. Pouco antes de cair, vi o reflexo do rosto que eu não via há meses. Desde o dia em que tirei todos os espelhos e vidros que pudessem refletir a imagem de mim que eu já não conhecia mais.

Pálpebras já roxas, água não mais transparente, mas vermelha como a ponta do cigarro que ainda queimava na borda do bidê. Os ladrilhos do chão, antes azuis e tons de creme, agora eram de um rubro que ofuscou meus olhos até que se fechassem de vez. O barulho da água, que já me ensurdecia, me fez perceber porque não pude responder quando chamei meu nome e então vi que o que faltou foi vontade de viver.



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