Artigo | O fator humano e o ChatGPT no estudo bíblico
Não poucas vezes, um novo hábito devocional tem surgido no meio dos cristãos: o estudo bíblico devocional induzido pelo ChatGPT.
O ChatGPT é uma ferramenta de inteligência artificial muito útil em diversos aspectos, que interage com o usuário por meio de um chat. Sua diferença primária para sites de pesquisas como o Google, por exemplo, é o fato de que o GPT responde as perguntas de forma “humanizada".
Essa tendência de humanização de máquinas vem da necessidade do homem de interação e de respostas que criem uma expectativa de relacionamento, tendo em vista o crescente movimento social de isolamento, gerado inclusive pelo excesso de redes e telas e pela pandemia da COVID-19, que nos empurrou para o medo do contágio e para a fobia social. Estamos cada vez mais sozinhos em nossos universos virtuais, o que vai contra a essência básica da existência humana desde o momento em que Deus declarou que não era bom que o homem estivesse só (Gn 2.18).
A questão que talvez mereça uma observação é a acriticidade com que temos consumido essas ferramentas gerativas de informação. Não estamos preocupados com a integridade do que lemos nem com as possíveis consequências intelectuais da dependência dessas tecnologias para o pensamento. A busca por maiores resultados, em menos tempo, pode nos levar a sermos enganados pela falta de checagem das informações fornecidas pelo equipamento sem as devidas precauções ao consultar suas fontes primárias, fontes antigas, cujo caráter histórico dão a elas maior credibilidade e análise temporal não só de seus pares, mas de seus subsequentes. Saber que o livro que você está lendo, por exemplo, passou no teste do tempo é muito importante para sabermos com que tipo de informação estamos lidando.
Há uma passagem na Escritura que talvez possa ilustrar com bastante vigor o que se defende aqui (sim, na Escritura, quando nem energia elétrica era uma possibilidade). Essa passagem está em 2Cr 10. Recomendo que você faça uma pausa e leia todo o capítulo, mas a história é, resumidamente, a de um rei chamado Roboão, sucessor de Salomão, o homem mais sábio que já existiu. Depois da morte de seu pai, Roboão assumiu o reinado em Israel e o povo foi procurá-lo, pois Salomão fora um rei que cobrava muitos impostos, embora tenha também feito do seu povo o mais rico e poderoso do seu tempo.
Acontece que, diante da solicitação do povo por um jugo mais leve e pela diminuição do trabalho árduo, Roboão foi consultar as autoridades que haviam servido ao seu pai durante sua vida, os anciãos da sua terra. Eles, então, aconselham Roboão a diminuir o fardo do povo, para que fosse bom com eles, pois, sendo agradáveis a eles, eles também o seriam em gratidão. Perceba, o jovem rei consultou a fonte da sabedoria do seu tempo, a “literatura” antiga do seu tempo, em busca de respostas para a solução dos seus problemas, ele foi até os homens mais experientes e experimentados na vida para pedir que lhe ajudassem nessa decisão.
Porém, Roboão não acha bom o conselho e decide consultar os jovens próximos, os que haviam crescido com ele, com a mesma idade e mesma pouca experiência que ele. Os jovens então responderam: “ Assim falarás ao povo que disse: Teu pai fez pesado o nosso jugo, mas alivia-o de sobre nós; assim lhe falarás: Meu dedo mínimo é mais grosso do que os lombos de meu pai. Assim que, se meu pai vos impôs jugo pesado, eu ainda vo-lo aumentarei; meu pai vos castigou com açoites, porém eu vos castigarei com escorpiões (2Cr 10.10–11).
Não poderia haver conselho mais insensato, tendo em vista que as consequências que vieram depois demonstraram a tolice dessa resposta enviada ao povo por um mensageiro. O povo se revolta contra Roboão e se coloca em revolta contra a casa de Davi e “Israel se mantém rebelado contra a casa de Davi até ao dia de hoje” (2Cr 10.19).
Roboão preferiu ouvir o ChatGPT do seu tempo, sem a subjetividade das informações produzidas por mãos humanas envolvidas com o seu objeto, sem considerar a fonte de suas informações, muito mais sábia no que diz respeito às questões emocionais tão importantes para o desenvolvimento de uma sociedade pacífica, e acumulou sobre si uma consequência que dura até ao dia de hoje.
A comparação pode parecer estranha, no entanto, se analisarmos com cuidado, veremos que ter uma boa fonte de informações, ou de conselhos, é parte fundamental para uma relevante administração de dados ou de crises. Essa é uma boa preocupação no que diz respeito ao estudo induzido por um chat robótico que não leva em consideração o que há de mais relevante no estudo de um texto bíblico: suas fontes primárias e seus intérpretes ao longo da História, cada um em seu contexto e com suas subjetividades, que nem sempre são o padrão ideal de análise de um texto.
Todo esse cuidado se deve ao fato de que uma boa prática da ética cristã depende de uma boa interpretação bíblica. Se um texto é mal compreendido por quem o lê, dificilmente serão compreendidos seus princípios e a teologia por detrás das facetas das linhas contidas nos versículos. Para que eu consiga desfrutar de uma vida com a abundância que me foi prometida (Jo 10.10) é preciso conhecer a verdade e todo conhecimento é uma construção de camadas do saber, que compõem a liberdade da vida com Cristo.
A gama de acessos a informações que a Inteligência Artificial coloca ao nosso dispôr não constrói conhecimento eficaz e duradouro, apenas acumula dados que, muitas vezes, sequer terão coerência com o que se busca saber. A consequência é uma série de distrações e o distanciamento do conhecimento da verdade. A Inteligência Artificial faz uma consulta em uma biblioteca online, com recursos mundiais e sem um filtro teológico confiável, tendo em vista a quantidade de conteúdos online de baixíssima qualidade que são produzidos nos milhares de milhões de sites existem na rede de internet. Não sabemos que tipo de filtro de qualidade o ChatGPT usa. Como saber fazer a pergunta certa para encontrar uma resposta correta se, na maior parte das vezes, o usuário não sabe o que está procurando? Muitas dúvidas levadas ao ChatGPT não partem de pressupostos fundamentais ou sequer de premissas, são perguntas do tipo "Quem foi Jacó?", “O que são anjos", “Lilith existiu?”. Perguntas sem uma base de assertividade. Aliás, a lista de perguntas mais feitas ao ChatGPT não parecem saber que tipo de avaliação deve ser feita a suas respostas para saber se são confiáveis ou não. Algumas são:
- Como melhorar meu português?
- Você pode me ajudar com o resumo de um livro?
- Como investir meu dinheiro de forma segura?
Será que a manipulação de uma pergunta tendenciosa não pode acabar atraindo respostas que se adequem mais ao que eu quero ler do que àquilo que condiz mais com a verdade? Se eu não sei as regras básicas do português em sua gramática, como encontrar uma resposta segura? Se eu não li um livro, como posso saber se o resumo que me for apresentado não contém erros? Se eu não souber nada sobre investimentos, como saber se as informações não estão sendo manipuladas pela especulação do mercado?
Uma pergunta que devemos sempre nos fazer quando lemos um texto é: esse texto é confiável? Quais as referências você tem para ler, por exemplo, esse texto em que está debruçado agora? Você conhece o autor? Conhece o site, se ele é vinculado a uma boa igreja, uma editora confiável, um grupo de teólogos cristãos centrados na Escritura como fonte da verdade? Existem critérios que somente o homem pode fazer quando faz uma pesquisa. Esse é o ponto de destaque aqui.
Não existe neutralidade de pensamento e nem de programação de dados. Alguém manipula o que está sendo gerado, os algoritmos são programados por mãos humanas que contém viés ideológico em seus códigos de programação. É inegável que para tarefas simples, como organizar, planejar e compartilhar planos de leitura bíblica, o sistema do ChatGPT é bastante útil e rápido, mas e no que diz respeito a estudos mais aprofundados, que envolvem questões teológicas mais complexas, que exigem inclusive do usuário que saiba usar determinados termos e expressões da Teologia para uma boa pesquisa?
Ativistas da PETA (Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais - em português), uma ONG de defesa aos direitos dos animais, usaram a tecnologia do ChatGPT para a reescrita de um dos livros da Bíblia, o livro de Gênesis, para transformar em vegana a trajetória do povo hebreu e passar uma mensagem aos cristãos de cuidado com os animais. Esses ativistas fazem uma leitura absolutamente anacrônica do texto bíblico, com pressupostos totalmente fora do contexto hermenêutico do texto e se sentem na autoridade de adulterá-lo para a modificação da história, na tentativa de mudar a sua realidade contemporânea. E essas informações entram no hall de informações do sistema de pesquisa do chat. É esse texto que será consultado também quando você fizer uma pesquisa sobre, por exemplo, “a Bíblia e a causa animal", em que termos foram modificados para colocar os animais no mesmo patamar de importância dos homens.
Alterar palavras da Escritura é alterar seu estado original, sua composição fundamental e a mensagem de Deus para o seu povo. Além disso, há condenações claras na Escritura a quem fizer isso: Eu, a todo aquele que ouve as palavras da profecia deste livro, testifico: Se alguém lhes fizer qualquer acréscimo, Deus lhe acrescentará os flagelos escritos neste livro; e, se alguém tirar qualquer coisa das palavras do livro desta profecia, Deus tirará a sua parte da árvore da vida, da cidade santa e das coisas que se acham escritas neste livro (Ap 22.18–19).
Um aplicativo que usa o ChatGPT como fonte, garante embarcar seus usuários em uma jornada espiritual desenvolvendo conversas com figuras bíblicas, como Maria, Abraão, Paulo e até mesmo Jesus. O Text With Jesus, garante uma divina conexão que pode ser guardada no seu bolso. Segundo o site (https://textwith.me/en/jesus/), os usuários podem encontrar conforto, inspirações e reflexões conversando com o próprio Cristo. Seria isso possível? Que tipo de concretização imagética se faz na mente de um usuário dessa tecnologia sobre o Verbo encarnado se eu posso acessá-lo por meio de um aplicativo e guardá-lo no bolso a qualquer momento? Em que lugar fica a oração e sua importância na vida cristã diante dessa realidade tão fugaz? É muito mais fácil consultar um chat com Jesus do que ter que parar tudo, falar com Deus por meio de sua Palavra e esperar ouvir o Espírito de Deus falar de volta.
Obviamente o que se espera dessa tecnologia é que ela faça uma análise das fontes bíblicas para gerar diálogos contemporâneos que compilem as informações coletadas, mas como confiar nisso a ponto de atribuir ao chat o poder de Deus com a concatenação das suas palavras? E as questões politicamente corretas ao que o ChatGPT está sujeito, como tratariam questões sensíveis como a homossexualidade, o divórcio, entre outros assuntos desse teor? Aos cristãos mais maduros, engajados no estudo teológico, talvez haja precauções e cuidados adequados, mas eles não são a maioria da igreja.
Portanto, tendo em vista as dificuldades e os riscos de informações que contradigam a verdade das Escrituras, talvez a melhor opção para a investigação do texto bíblico ainda sejam os bons comentários bíblicos, as Bíblias de estudo elaboradas pelas sociedades bíblicas, as classes de escolas dominicais. Pedir à rede de internet mundial que elabore para você, de forma imediata, o que os maiores nomes da Igreja levaram toda sua vida para construir, é, no mínimo, imprudente e desonesto, pois não constrói o labor teológico que exige o joelho dobrado e a atuação do Espírito Santo na condução do devocional que vai além da mente e alcança o coração.
De outra forma, a Inteligência Artificial pode ser muito útil aos estudos teológicos quando usada dentro de um ambiente controlado. Existem ferramentas que têm poupado tempo e agilizado a vida de muitos professores e pregadores, como softwares bíblicos que acumulam informações confiáveis e ajudam os estudantes a otimizarem suas pesquisas por meio de uma tecnologia de cruzamento de informações.
Isto é, o problema não está na tecnologia, que em muito facilita a vida dos pesquisadores, mas em como você a utiliza; se com as fontes certas, analisadas pelos “anciãos” do seu tempo e do passado, ou se as inseguras, pesquisadas por todo o universo online sem nenhum tipo de análise prévia do que traz de informações.
Escolher o ambiente virtual em que se caminha é importante para a caminhada. Quanto mais abrolhos tirarmos de debaixo dos nosso pés, menor é o risco de escorregarmos e escaparmos do caminho estreio até a santidade de Deus.
Aceitemos com temor e tremor o sábio conselho antigo de Paulo aos coríntios e a nós: Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas convêm. Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas (1Co 6.12).
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