Artigo | Salvifici Dolores, de João Paulo II, e a Teologia Reformada

A igreja sempre entendeu que o sofrimento é um caminho para a santificação. A carta canônica de Tiago declara: “Meus irmãos, considerem motivo de grande alegria o fato de passarem por diversas provações, pois vocês sabem que a prova da sua fé produz perseverança” (Tiago 1:2-3). Na Escritura, o sofrimento é sempre apresentado como causa de angústia e dor, mas também de benesses futuras, pois colocam aqueles que creem em Cristo mais próximos dos seus sofrimentos: “Porque a vós vos foi concedido, em relação a Cristo, não somente crer nele, como também padecer por ele” (Fp 1.29).

As bases da fé cristã fundamentam-se no sofrimento e na morte de Cristo na cruz para a redenção dos homens. Essa é uma importante constatação, pois a obra redentora de Cristo inclui o sofrimento como um meio de trazer salvação ao mundo. O sacrifício substitutivo, que dava ao pecador vida no Antigo Testamento, era representado pelo sacrifício de animais e o derramamento do seu sangue, gerando dor e sofrimento, demonstrando que o pecado do homem gera morte. À luz disto, Isaías 53 constrói para o leitor a figura de um "servo sofredor", que viria a redimir Israel por meio de seu sacrifício pessoal e sua morte. Porque Israel não é capaz de obedecer a Lei, Deus faz uma aliança com seu povo para redimi-lo através da sua semente, Cristo, que por seus sofrimentos e obediência é capaz de vencer a maldição imposta pela Lei de uma ver por todas.

"Porque Cristo não entrou em santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, porém no mesmo céu, para comparecer, agora, por nós, diante de Deus; nem ainda para se oferecer a si mesmo muitas vezes, como o sumo sacerdote cada ano entra no Santo dos Santos com sangue alheio. Ora, neste caso, seria necessário que ele tivesse sofrido muitas vezes desde a fundação do mundo; agora, porém, ao se cumprirem os tempos, se manifestou uma vez por todas, para aniquilar, pelo sacrifício de si mesmo, o pecado. E, assim como aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo, depois disto, o juízo, assim também Cristo, tendo-se oferecido uma vez para sempre para tirar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que o aguardam para a salvação." (Hebreus 9.24–28)

Portanto, o sofrimento de Cristo, que inclui sua morte, diz respeito àquilo imposto sobre o homem pelo pecado. Foi preciso uma perfeita propiciação, isto é, um derramar perfeito de sangue para aplacar a ira de Deus, que esclareceria a sombra dos sacrifícios animais do Antigo Testamento, para substituir a humanidade diante da penalidade e do juízo de Deus Pai para o homem condenado. O sofrimento está associado às consequências impostas pelo pecado e por Satanás (Gn 3.15; Jó 2.6; 2Co 12.7). Na cruz, vencendo o pecado e Satanás, Cristo vence também o sofrimento e garante uma vida futura em sua presença sem traços do que foi causado pela Queda.

"E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram. E aquele que está assentado no trono disse: Eis que faço novas todas as coisas. E acrescentou: Escreve, porque estas palavras são fiéis e verdadeiras." (Apocalipse 21.4–5)

Não apenas isto, o sofrimento do qual os homens participam podem gerar bons efeitos na purificação do seu coração e na identificação de seus ídolos, assim como ajuda o crente a compreender melhor e com mais profundidade a sua participação nos sofrimentos de Cristo, que nos levará a sermos com ele também glorificados (Marcos 10:39; Romanos 8:17; 2 Coríntios 1:5; Filipenses 1:29). As promessas do sofrimento terreno nos são propostas, mantendo firmes nossos olhos no:

"Autor e Consumador da fé, Jesus, o qual, em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, não fazendo caso da ignomínia, e está assentado à destra do trono de Deus. 3 Considerai, pois, atentamente, aquele que suportou tamanha oposição dos pecadores contra si mesmo, para que não vos fatigueis, desmaiando em vossa alma." (Hebreus 12.2–3)

No entanto, ao contrário do entendimento reformado, a ICAR entende o sofrimento como salvífico, isto é, um meio pelo qual o crente encontra salvação e redenção para os seus pecados. Esse entendimento parte do pressuposto de que se a redenção se realizou mediante a cruz de Cristo, ou seja, pelo seu sofrimento, logo, o sofrimento faz parte do meio pelo qual a redenção se aplica ao crente e também da forma como ela deve ser buscada. Esse entendimento, expresso pela ICAR, está na Encíclica Redemptor Hominis, de João Paulo II, na qual se afirma que em Cristo cada um dos homens se torna o caminho da Igreja.


O SOFRIMENTO E A REDENÇÃO

A obra fundamental a ser analisada para este trabalho é “O sentido cristão do sofrimento humano: carta apostólica salvifici doloris, de João Paulo II. Nela, o autor concorda com a teologia reformada quando diz que “o homem sofre por causa do mal, que é uma certa falta, limitação ou distorção do bem” (PAULO II, 2009, p. 13). Concorda também que somos participantes do sofrimento de Cristo e o que o sofrimento não é puramente consequência de pecados diretos, isto é, castigo por pecados objetivos, mas resultado do pecado original:

"O mal de fato permanece ligado ao pecado e à morte. E ainda que se deva ter muita cautela em considerar o sofrimento do homem como consequência de pecados concretos (como mostra precisamente o exemplo do justo Jó), ele não pode contudo ser separado do pecado das origens, daquilo que em São João é chamado “o pecado do mundo", nem do pano de fundo pecaminoso das ações pessoais e dos processos sociais da história do homem." (PAULO II, 2009, p. 25)

A problemática se dá quando a obra inicia a apresentação de um “Evangelho do Sofrimento", atribuindo um caráter salvífico ao sofrimento humano. A obra destaca que o sofrimento de Jesus é assumido por amor e que, junto dele, o ensino de Jesus torna-se uma "fonte abundante para aqueles que participaram dos sofrimentos de Jesus na primeira geração dos seus discípulos e confessores” (PAULO II, 2009, p. 50). A dificuldade disso é que os sofrimentos de Jesus, o redentor, se deram por ter ele participado da nossa humanidade, por ter ele assumido sobre si todos os nossos pecados e transgressões, por ter tomado sobre si nossas todas as enfermidades e dores e por ter ele carregado os nossos sofrimentos, não porque ele estava dando a nós uma forma de buscar viver, mas porque ele assumiu a nossa morte. Não é preciso buscar o sofrimento auto infligido para seguir Jesus, pois o mundo o odiou e continua o odiando, assim como também os seus discípulos (João 15.18). Pelos sofrimentos de Jesus, aqueles que nele creem encontram a cura, mas a obra salvífica de Cristo nos ensina que os sofrimentos de Jesus são capazes de nos redimir porque ele é Deus, porque suas duas naturezas fazem dele o perfeito sacrifício, a perfeita expiação. Sua morte de cruz consuma uma dupla imputação de justiça: da ira de Deus sobre Cristo e da redenção dos pecados por Cristo sobre nós.

Entender os sofrimentos do homem comum como uma espécie de redenção que conduz à vida eterna, não condiz com o que a Escritura fala do sofrimento e é isso o que João Paulo II faz quando afirma, sobre Maria por exemplo, o seguinte:

"Em Maria, os sofrimentos, numerosos e intensos, sucederam-se com tal conexão e encadeamento que bem demonstram a sua fé inabalável; e foram, além disso, uma contribuição para a Redenção de todos. Na realidade, desde o colóquio misterioso que teve com o anjo, ela entrevê na sua missão de mãe a "destinação" de compartilhar, de maneira única e irrepetível, a mesma missão do seu Filho. E teve bem depressa a confirmação disso, quer nos acontecimentos que acompanharam o nascimento de Jesus em Belém, quer no anúncio explícito do velho Simeão, que lhe falou de uma espada bem afiada que haveria de transpassar-lhe a alma, quer, ainda, na ansiedade e nas privações da fuga precipitada para o Egito, motivada pela decisão cruel de Herodes." (PAULO II, 2009, p. 50-51)

Afirmar que o sofrimento de Maria contribuiu para a redenção não só dela mesma, mas de todos é como incluí-la na cruz, fazê-la coparticipante da divindade de Cristo. E mais ainda, diz-se sobre os sacrifícios maternos de Maria ser fecundo para fins de salvação universal:

"Depois das vicissitudes da vida oculta e pública do seu Filho, por ela certamente partilhadas com viva sensibilidade, foi no Calvário que o sofrimento de Maria Santíssima, conjunto ao de Jesus, atingiu um ponto culminante dificilmente imaginável na sua sublimidade para o entendimento humano; mas, misterioso, por certo sobrenaturalmente fecundo para os fins da salvação universal. A sua subida ao Calvário e aquele seu "estar" ao pé da Cruz com o discípulo amado foram uma participação muito especial na morte redentora do Filho, assim como as palavras que ela pôde escutar dos lábios de Jesus foram como que a entrega solene deste Evangelho particular, destinado a ser anunciado a toda a comunidade dos fiéis." (PAULO II, 2009, p. 51)

João Paulo, em sua carta apostólica, afirma veementemente que o sofrimento não é apenas uma presença que está na vida de todos os que experimentam a salvação e se dedicam a viver por Cristo, mas que também tem ele uma força salvífica – essa expressão aparece muitas vezes em sua carta -, que inclui o cristão na missão messiânica e redentora de Cristo, fazendo dessa uma vocação da igreja.

Seu entendimento do texto bíblico de Lucas 9.23 (“Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz e siga-me.”) o leva a crer que o ensino de Cristo diz respeito a uma busca pelo sofrimento pessoal da cruz como uma forma de autorredenção. Quando aquilo que Jesus ensina ao falar o que Lucas registrou é que negar-se a si mesmo e tomar sua cruz não tem a ver com buscar o sofrimento terreno como forma de purificação da alma, mas dizer adeus às suas próprias vontades, negar suas inclinações aos desejos pessoais e egoístas, viver não nos importando mais conosco do que com a necessidade do próximo, pois “tomar sobre si a cruz refere-se ao fardo que devemos nos dispor a carregar” (RIENECKER, Evangelho de Lucas, pg 215), fardos que demonstrem aos outros o amor que primeiro recebemos de Deus pela cruz.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma boa teologia bíblica ajuda o leitor a compreender que, quando Cristo convida seus discípulos a segui-lo e a percorrer seus caminhos, o que ele está fazendo é guiando aqueles que nele creem a andarem nos caminhos traçados por ele até o Pai. Não se trata de uma mortificação pessoal intencional e causada, não é uma busca arbitrária por santificação e redenção pessoal – ou universal -, assim como não se trata de fazermo-nos penitentes para pagar pelos pecados de outros, sejam eles vivos ou já mortos. Entender desta forma é fazer sua própria vontade, que deveria estar sacrificada, ao invés da vontade de Deus, que é boa, perfeita e agradável (Romanos 12.2). Observar o que Deus diz é fazer a vontade dele e não a nossa.

O sofrimento da cruz anunciado e consumado por Cristo, ensina aos seus apóstolos que a morte é um caminho doloroso, mas não a morte física ou o sofrimento físico, e sim o matar a sua própria carne, que Paulo explica o que significa:

"Fazei, pois, morrer a vossa natureza terrena: prostituição, impureza, paixão lasciva, desejo maligno e a avareza, que é idolatria; por estas coisas é que vem a ira de Deus [sobre os filhos da desobediência]." (Colossenses 3.5–6)

Portanto, os sofrimentos a que Cristo se refere ao falar dos que nele creem, registrado por Lucas, dizem respeito a esse sofrimento interior, que é gerado pelo Espírito Santo para a santificação do salvo. Contudo, o sofrimento terreno faz parte não só da vida do crente, mas de toda a humanidade, como consequência da Queda. O sofrimento faz parte da peregrinação cristã, sendo ordenado pelo próprio Deus (João 16.33).

Ao contrário do que creem os católicos apostólicos romanos, o sofrimento não é uma “força vitoriosa” (PAULO II, 2009, p. 54), que atribui ao homem aspectos salvíficos em si mesmo. A Teologia Reformada compreende que o cristão não deve rejeitar o sofrimento como algo que não procede de Deus, mas também não deve procurá-lo como uma forma de alcançar a salvação ou a redenção dos seus pecados. Os sofrimentos não são uma “cooperação com a graça do Redentor crucificado” (PAULO II, 2009, p. 55), como afirma João Paulo II, mas uma consequência natural de andar na santidade de Deus por meio de Cristo.

Para a finalização deste breve estudo, faz-se importante destacar a dificuldade de encontrar bases bíblicas às afirmações feitas por João Paulo II em sua carta apostólica. Ignorar as Escrituras é como ignorar o próprio Cristo e negar a sabedoria de Deus.


REFERÊNCIAS

PAULO II, João. O sentido cristão do sofrimento humano: carta apostólica salvifici doloris. 11 ed. Paulinas: São Paulo, 2024.

RIENECKER, Fritz. Evangelho de Lucas, Comentário Esperança. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 2005.


Comentários

  1. É fato que Igreja Católica baseia parte da salvação de seus fiéis ao cumprimento de penitências para se alcançar o perdão de pecados. É fato também que tal liturgia não está de acordo com os Escritos Sagrados, alegando se que os sucessores de Pedro, podem fazer adições as Escrituras, o que também é veementemente condenado pela própria Bíblia Sagrada. Uma tradição seguida cegamente pela maioria dos seguidores da ICAR, sem base bíblica e com interpretação distorcida.

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